, de de

Incêndio na boate Kiss: dez anos de luto, injustiça e impunidade

Quatro réus foram condenados em 2021, porém o julgamento foi anulado pela Justiça alguns meses depois

Foto: Agência Brasil

Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013? 


Há dez anos a cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi palco de uma tragédia que custou a vida de 242 jovens. O incêndio na boate Kiss, que foi resultado de ações criminosas, está até hoje sem um desfecho judicial. 


Em 27 de janeiro de 2013, acontecia um show da banda Gurizada Fandangueira na boate Kiss. O estabelecimento tinha capacidade máxima de 690 pessoas, porém é estimado que naquela noite haviam 1.300 pessoas no local. De acordo com as investigações, o incêndio começou por volta das 3h, após um dos músicos acender um fogo de artifício. As faíscas atingiram a espuma de isolamento acústico e deram início ao fogo. 


A boate tinha uma única saída, que foi trancada pelos seguranças para que os clientes não saíssem sem pagar. “Sem comanda ninguém sai”, frase dita na minissérie “Todo Dia a Mesma Noite”, lançada em 25 de janeiro de 2023. A fala faz referência ao momento em que os jovens foram impedidos de sair do local em chamas, ação que custou inúmeras vidas. 


Além disso, o estabelecimento não tinha placas luminosas que indicavam a saída, o que levou muitas pessoas a entrarem em um banheiro, o confundindo com a saída de emergência. Os bombeiros que participaram do resgate relataram que a maioria das vítimas foram encontradas neste banheiro. 


“A capitã da brigada caminhou pela Kiss atordoada não só com o que viu, mas com o barulho dos celulares das vítimas. Os aparelhos tocavam juntos e cada telefone tinha um som diferente. Muitos tocavam conhecidas músicas sertanejas, outros, forró e até o repertório tradicional gaúcho. Na maioria dos casos, porém, o visor indicava a mesma legenda: "mãe", "mamãe", "vó", "casa", "pai" "mana". Aquela sinfonia da tragédia era tão insuportável quanto a cena que Liliane presenciava. Como lidar com um evento dessa proporção?” trecho do livro Todo Dia a Mesma Noite, da jornalista Daniela Arbex. 


Os depoimentos ainda apontaram que houveram tentativas de uso dos extintores de incêndio, porém estavam todos vazios, e havia poucos no local, muito abaixo do recomendado, pois, de acordo com o dono da boate Kiss, ele achava feio os extintores na parede. 


O incêndio causou a morte de 242 pessoas, a maioria por intoxicação da fumaça gerada com o contato na espuma, que iniciou um processo de combustão e a intoxicação pelo ácido cianídrico (HCN), um dos compostos do cianeto, que era usado nas câmaras de gás. No segundo episódio, a série “Todo Dia a Mesma Noite” explica que os jovens envenenados jamais sobreviveriam ao contato com a toxina, pois ela continua agindo no corpo exposto e pode matar em questão de minutos.




Outras 636 pessoas ficaram feridas com queimaduras no corpo e amputação de membros, além de todo o dano psicológico. 


Mesmo com tantas vítimas, ninguém foi responsabilizado e depois de 10 anos as famílias e sobreviventes continuam lutando por justiça. 


Responsabilidade criminal 


Os sócios da casa noturna Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, e os integrantes da banda que se apresentou com show pirotécnico Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, os quatro réus foram julgados por 242 homicídios consumados e 636 tentativas (artigo 21 do Código Penal). O Ministério Público ainda incluiu duas qualificadoras, por motivo torpe e com emprego de fogo, que aumentariam a pena. 


No entanto, em agosto de 2022, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) anulou as condenações dos quatro réus sob o argumento de descumprimento de regras na formação do Conselho de Sentença.


Jean Severo, advogado de Luciano Bonilha, sustenta o argumento de que a sentença do júri, que foi anulada, era injusta. Ele tem esperança de uma resolução até o final deste ano. Já a defesa de Mauro Londero, quer que a anulação seja mantida e que um novo julgamento tenha sentença justa. 


De acordo com Tatiana Vizzotto Borsa, advogada do vocalista Marcelo Santos, o músico permanece trabalhando em São Vicente do Sul, aguardando a sentença de instâncias judiciais superiores. O advogado de Elissandro Spohr não quis se pronunciar.


Familiares e sobreviventes 


Durante estes 10 anos, muitos familiares ainda lutam por justiça, para eles seus entes queridos não terão paz enquanto o caso não tiver um desfecho adequado e justo.

Carregando as marcas da tragédia, os sobrevintes convivem com as lembranças e traumas daquela noite, onde perderam parentes e amigos, e ressaltam a importância do que é lutar todos os dias para que os responsáveis não saiam impunes.


Delvani Rosso um dos sobreviventes, teve quase metade do corpo queimado no incêndio, para ele as marcas em seu corpo são um sinal de força e superação.


“Eu conto a minha história para as pessoas também, para dar força para as pessoas. Eu tento viver a minha vida da melhor forma possível hoje, tento aproveitar todas as oportunidades para me tornar um ser humano melhor e contribuir também para que eu torne a vida das pessoas melhore” ele afirma.


Vários projetos foram criados para apoiar os familiares e os sobreviventes, um deles foi criado por Gabriel Rovadoschi que sobreviveu ao incêndio, como presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Ele acredita que a dor ainda pode ser superada, mas que isso não se faz sozinho, e que contar a história da Kiss é uma forma que muitos encontraram de lidar com seus sofrimentos.


Nesta semana foi possível acompanhar as homenagens que aconteceram em Santa Maria graças a AVTSM, contando com grupos teatrais, cultos ecumênicos e exibição de documentários, os cidadãos puderam se emocionar com as lembranças de seus parentes e amigos.


O governador do RS, Eduardo Leite, fez seu tributo às vítimas da tragédia. “Lembramos de tudo com tristeza, mas ao mesmo tempo buscamos compartilhar a dor de uma história que machucou e ainda machuca todo o nosso Rio Grande do Sul. Vai o nosso respeito, o nosso abraço e o nosso carinho e disposição para fazermos homenagens e tributos às famílias e à memória daqueles que se foram. Falo não apenas de homenagens simbólicas, mas também no nosso trabalho no sentido de que situações como aquela nunca mais se repitam”, disse ele. 


No sábado (28) às 20h, haverá uma missa em homenagem às 242 vítimas do incêndio.


Legislação


Após a tragédia, foi analisada a fragilidade na legislação a respeito de incêndios no Brasil. A partir disso, um projeto de lei foi criado para aumentar a fiscalização em estabelecimentos com grande fluxo de pessoas: prédios, escritórios, shoppings, escolas, entre outros. 


Criada pela Assembleia Gaúcha em 26 de dezembro de 2013, A Lei Complementar Kiss, foi bastante rigorosa com a fiscalização e prevenção de incêndios no estado, aplicando suas normas para edifícios e áreas de grande fluxo, além da aplicação de providências para o Corpo de Bombeiros. 


A Lei Kiss foi sancionada pelo à época Presidente da República, Michel Temer, e entrou em vigor em setembro de 2017, mudando assim as regras de prevenção a incêndios no RS. Após seis anos anos a medida está sofrendo mudanças na flexibilização. A nova lei exclui a necessidade do Plano de Prevenção Contra Incêndios (PPCI) aos empreendimentos rurais, sendo assim uma exceção aplicada para silos e armazéns, que passaram a ser fiscalizados pelo conselho da Agroindústria.

  

Obras de multimídia sobre o incêndio


“Por memória, por justiça, para que não se repetia”, é a sinopse da minissérie Todo Dia a Mesma Noite, lançada nesta quarta-feira (25), pela Netflix. A produção é uma dramatização da tragédia que se baseia no livro com o mesmo nome e tem o objetivo de fazer o público conhecer o caso, sentir a dor e a indignação dos familiares e sobreviventes que estão, até hoje, lutando por justiça. 




A minissérie foi autorizada pelos sobreviventes e familiares, que inclusive participaram do processo criativo. No TikTok, Alice Mariano (@alicemarianoofical) uma sobrevivente da tragédia, postou um vídeo reagindo ao primeiro episódio.


Em suas palavras, a minissérie reproduziu tudo como exatamente foi, e com isso reviveu todas as lembranças do ocorrido. E mesmo sentindo toda a dor novamente ela assistiu a série, mas recomenda para aqueles que também passaram pela tragédia, pensar bastante antes de assistir pois é repleto de cenas fortes e muito tristes. 


“Foi há 10 anos, mas parece que foi ontem” ela diz no vídeo.


Em fevereiro, o Ministério da Saúde pretende lançar um documentário de três episódios sobre a atuação do Sistema Único de Saúde (SUS) no dia da tragédia. Haverão depoimentos de profissionais da área que atenderam as vítimas, e pretende ressaltar a importância das autoridades na repercussão do caso em território nacional. A expectativa é que a produção se torne um material didático para cursos de Emergências Biológicas Complexas do Programa de Formação em Emergências em Saúde Pública (Profesp).